Malês (2024)
- Douglas Moutinho
- 4 de out.
- 3 min de leitura
A memória de uma da insurreição

Baseado em fatos históricos, Malês retrata a Revolta dos Malês, considerada a maior insurreição de escravizados já ocorrida no Brasil. O levante, ocorrido em Salvador (Bahia), no
ano de 1835, foi protagonizado por africanos muçulmanos — em sua maioria iorubás — que articularam uma ação coordenada contra o sistema escravocrata vigente. A narrativa companha a trajetória de um casal separado à força ao ser sequestrado na África e trazido ao Brasil como parte do tráfico transatlântico de escravizados. Enquanto lutam para sobreviver e se reencontrar, ambos se envolvem nos acontecimentos que culminam na revolta. Pacífico Licutan (interpretado por Antonio Pitanga) surge como um dos principais articuladores da insurreição, ressaltando a importância da união entre diferentes etnias, culturas e religiões africanas na luta contra a escravidão.
A produção se destaca positivamente por lançar luz sobre um episódio frequentemente negligenciado pela historiografia oficial e pelo cinema nacional. É sempre notável quando o
Brasil volta seu olhar para a própria história e investe em narrativas de época. Nesse contexto, Malês representa um esforço relevante. A presença de Antonio Pitanga, aos 85 anos, na direção e no elenco, agrega valor simbólico e histórico à obra, especialmente considerando sua trajetória no cinema brasileiro.
Um dos elementos mais louváveis do filme é seu compromisso com a complexidade histórica. A obra evita visões maniqueístas que opõem brancos e negros de forma simplista. Ao mostrar, por exemplo, africanos participando do sequestro e comercialização de seus pares, o filme reconhece que a dinâmica da escravidão envolvia relações de poder e opressão internas à própria África, algo frequentemente omitido ou suavizado. Tal escolha revela uma tentativa de historicizar o processo escravista sem reduzi-lo a dicotomias morais rasas, sem, no entanto, diluir a brutalidade do sistema escravocrata colonial.
Além disso, o filme apresenta aspectos significativos da vida dos escravizados, como o
uso sistemático do estupro para fins de reprodução forçada e a catequese em português como mecanismo de dominação e apagamento cultural. A questão da linguagem — cuja
complexidade histórica é imensa, dada a diversidade linguística africana e o papel do português como língua de controle — é abordada com cuidado, demonstrando a preocupação da produção com a autenticidade sociocultural do período.
No entanto, apesar da relevância temática e da densidade histórica, Malês incorre em uma limitação recorrente em muitas produções brasileiras: a estética televisiva genérica. Em diversos momentos, a linguagem audiovisual aproxima-se do modelo telenovelesco, com enquadramentos, iluminação e direção de atores que remetem mais à TV aberta do que ao cinema de linguagem própria. Esse tratamento imagético padronizado compromete a potência estética da obra e reduz sua capacidade de provocar o espectador também pela forma — especialmente em um filme que pretende revisitar criticamente a história brasileira.
Apesar de suas limitações formais, Malês é uma obra de inegável relevância no contexto
do cinema histórico brasileiro. Ao recuperar um episódio de resistência negra frequentemente marginalizado pela narrativa oficial, o filme contribui para a ampliação do imaginário coletivo sobre a escravidão, deslocando o foco da vitimização passiva para a agência política dos africanos e afrodescendentes no Brasil. Ainda que sua estética televisiva atue como um entrave à radicalidade formal que a temática exigiria, a obra representa um esforço legítimo de reinscrição da memória negra na história nacional. Nesse sentido, Malês se insere no conjunto de produções que buscam não apenas narrar o passado, mas reconfigurar as formas pelas quais ele é representado, tencionando o papel da imagem na construção da consciência histórica.
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