Cruella (2001)
- Douglas Moutinho
- 17 de fev. de 2023
- 4 min de leitura
Atualizado: 10 de set. de 2024
Uma ruptura com o maniqueísmo
Cruella se estabelece como uma tentativa da Disney em romper com o maniqueísmo tradicional do estúdio.
Cruella é um filme norte-americano de 2021 dirigido por Craig Gillespie, baseado na personagem Cruella de Vil, de Os 101 Dálmatas, romance de 1956 de Dodie Smith e do filme 101 Dálmatas da Disney.
Cruella faz parte de uma nova fórmula Disney de transportar para o universo dos live-actions vários filmes considerados clássicos dos estúdios. Esses live-actions variam entre adaptações bastante cruas, como foi o caso de Aladdin (2019) e Rei Leão (2019), ou se debruçam sobre uma nova visão de determinado elemento, como em Malévola (2014). Tal transporte de um formato (animação) para outro (live-action) faz parte de uma estratégia para “atualizar” o conteúdo e o direcionar para um público infantojuvenil da geração atual. Isso não surpreende, tendo as animações em 2D perdendo espaço gradativamente há décadas e tendo a globalização atingido tal nível que os valores sejam hoje quase que universalmente padrões e bastante diversos daqueles da época de A Branca de Neve e os Sete Anões (1937).

Essa transição dos clássicos para a contemporaneidade é eficaz, mas deve ser colocada à mercê da racionalidade característica desse tempo. O bem contra o mal, tema comum em praticamente todos os filmes da Disney, perde o sentido onde a racionalidade e uma maior compreensão da profundidade e complexidade psicológica do homem se estabelecem como panorama dessa geração. Séries como Breaking Bad e Game of Thrones se tornaram famosas por manterem seus personagens bastante distantes desse padrão maniqueísta. Essa forma de desenvolver personagens, além de os tornarem mais realistas, fazem com que o espectador se identifique de forma mais intensa com eles. Tais personagens podem ser comparados em complexidade com alguns pertencentes a clássicos da literatura, como Rodion Raskolnikov, de Crime e Castigo de Dostoievski. Personagens dicotômicos tendem a ser mais complexos e as narrativas nas quais eles se inserem tendem a ser mais imprevisíveis graças às várias e imprevisíveis ações desses personagens.

O já citado Malévola foi um filme em que não houve uma tentativa de ruptura com o maniqueísmo, mas sim uma abrupta inversão de perspectiva. A protagonista, Malévola, que na animação em A Bela Adormecida (1959) é caracterizada quase que arquetipicamente bela bruxa má, se torna no live-action uma guardiã incompreendida, onde todos os seus atos são para o bem da princesa Aurora. Os extremos apenas se invertem. Nos outros filmes, essa mudança é inexistente.
Tentando revigorar os clássicos Disney agora transportados para os live-actions, Cruella é um resultado de seu tempo. Com uma personagem mais desenvolvida, toda a personalidade da antiga Cruella é desconstruída, tendo ela agora um real motivo para o seu crescente “mal interior”. O mau pelo mau não é suficiente. Há a necessidade de racionalizar a personagem. Cruella se estabelece como uma tentativa da Disney em romper com o maniqueísmo tradicional do estúdio.
O filme é inteiramente dicotômico. Por uma lado temos uma obra que foge do realismo: há uma grande parte do filme em CGI trazendo cenas de ação impossíveis, sem a mínima preocupação com a verossimilhança; os cachorros, que são símbolos da marca 101 Dálmatas, são exagerados e não aparecem frequentemente, sendo apenas ferramentas, sendo que os outros animais também fazem movimentos acrobáticos exorbitantes; o roteiro é repleto de facilitadores; as apresentações da Cruella são praticamente impossíveis num plano mais realista; as vestimentas são exuberantes, geralmente monocromática; e todas as atuações também são exageradas e caricatas. Em oposição a esse distanciamento do real, o filme apresenta outras características que destacam certo realismo, tal como a adição de planos sequência que funcionam para revelar os espaços de forma bastante abrangente.

Essa artificialidade do real está intimamente ligada à questão da protagonista, que é explicitamente dividida entre uma pessoa boa e uma pessoa má. Craig Gillespie pinta Cruella como uma vilã com um motivo para uma vingança pessoal, e essa vingança vai sendo explorada a ponto de tornar-se o único eixo narrativo da história. No entanto falta maldade. As grandes cenas que poderiam refletir a maldade do personagem são suas performances, mas isso não leva a personagem além de uma menina rebelde. A mesma fórmula foi utilizada por ele em Eu, Tônya (2017). Parece que Craig tende a apelar para essa tendência pop punk. Tudo é, em Cruella, motivo para um momento de exposição e exaltação do personagem, o que até funciona bem em diversos momentos, mas transmite uma sensação de ausência de profundidade do personagem.
A Disney tenta se afastar do maniqueísmo tradicional dos personagens do estúdio, apresentando uma vilã teoricamente racional, com uma maldade que cresce gradativamente ao longo da história, mas que no fundo é incapaz até de matar os três cães capturados. Embora a empresa tenha fracassado em apresentar um personagem com profunda complexidade psicológica e tenha apelado para momentos de escape, o filme ainda assim funciona muito bem, se mostrando uma boa opção a ser explorada no futuro desse universo Disney de live-actions.




